Gastronomia brasileira também é cultura

Saber engrossar o caldo do bobó de camarão, o preparo minucioso do acarajé e da pamonha de milho verde, conhecer os acompanhamentos do feijão tropeiro e fazer goma de tapioca. Esses são alguns hábitos relacionados aos pratos típicos da alimentação brasileira que, infelizmente, não são conhecidos por grande parte da população. Muitas pessoas não tem informações sobre o cultivo e a destinação dos alimentos, assim como o impacto ambiental de sua produção. Com o objetivo de fortalecer a identidade cultural culinária do país e fomentar projetos que promovam uma alimentação mais saudável e em harmonia com o meio ambiente, o Instituto ATÁ lançou na segunda-feira, 08 de dezembro de 2014, a iniciativa Eu Como Cultura.

“Não é somente de uma campanha para incentivos fiscais direcionada ao mundo da gastronomia. Trata-se, em primeiro lugar, de um projeto transversal econômico e de desenvolvimento. É uma oportunidade vinculada ao turismo, à agricultura, à saúde e prioritariamente à educação” pontua Roberto Smeraldi, membro do conselho diretor do ATÁ. O projeto tem como objetivo principal mobilizar a população para conseguir a aprovação do projeto de lei 6562/13, em análise na Câmara dos Deputados, que considera a gastronomia nacional como parte das áreas que são beneficiadas pela política de incentivos fiscais da Lei 8.313/91 (Lei Nacional de Incentivo à Cultura ou Lei Rouanet).

Instituto ATÁ

“A ideia é usar o projeto de lei como primeira plataforma de discussão. Não temos nenhuma amarra politica e nenhum viés partidário. A aprovação da legislação representa um atalho que nos permite chegar longe com essa causa”, comenta o chef Alex Atala. “Nós acreditamos que a maior rede social do mundo é o alimento e nossa mobilização é maior do que qualquer força política”. Atala disse também que a Unesco reconhece a gastronomia como cultura e que o fato de o Brasil ser um país membro tem por obrigação reconhecer a questão também em âmbito nacional.

“O projeto de lei permite a obtenção de recursos para a criação de acervos e, sobretudo, para realização de pesquisas” explica Thiago Medaglia, membro do conselho diretor do instituto. No site criado para divulgar a iniciativa é possível imprimir um documento para elaborar um abaixo-assinado que será encaminhado à Câmara dos Deputados no início de 2015.

Mudar a relação com o alimento

“Algumas atitudes, como o consumo consciente, são muito simples e não custam nada. A força da cadeia do alimento é também do consumidor final. Se não compramos ingredientes duvidosos as empresas serão obrigadas a se readequar ao mercado”, destaca Atala. Outra aspecto apontado pelo chef foi a redução do consumo e da geração de resíduos. Por uma questão cultural, ou falta de informação, muitas pessoas não aproveitam os alimentos de forma integral. Infelizmente é comum ver na lata do lixo sementes ou cascas com alto potencial nutritivo que poderiam ser utilizadas em outros pratos.

“É muito importante frisar que esse não é um movimento de cozinheiros. Não importa o tamanho do meu restaurante e qual o preço final dele. Essa é uma campanha para restruturação de cadeias do alimento que todos nós somos dependentes, em todas as suas formas”, afirma Atala. De acordo com o chef, a cadeia do alimento pode é uma ferramenta para a proteção dos biomas de forma sustentável.

Campanha

Roberto Smeraldi citou que o parlamento europeu votou em fevereiro de 2014 uma resolução que estabeleceu a gastronomia como cultura nos países da União Europeia. “Essa ação alavanca debates dentro de áreas como agricultura, turismo, saúde e educação, além de fazer com que haja a criação de programas de educação nas escolas, a promoção de produtos agrícolas de qualidade, a valorização da cadeia do alimento e beneficie de forma geral a saúde da população”, completa.

Comer além das fronteiras

“Quando se fala de gastronomia, é preciso ter uma compreensão com base na territorialidade. No caso do Brasil, boa parte dos biomas são compartilhadas com os países vizinhos. Por isso, é necessário ter uma visão estratégica para construir plataformas que atendam às questões da diversidade dos conhecimentos tradicionais de toda essa região e estabeleça pontos de cooperação unilateral com os países do entorno. Nossa causa não irá para a frente se o país continuar preso à ideia de soberania nacional”, diz Beto Ricardo, antropólogo co-fundador do Instituto Socioambiental (ISA) e membro do ATÁ.

“É importante frisar que o Brasil tem uma enorme responsabilidade sobre a prática da agricultura. Vivemos em um país produtor de commodities de baixo valor agregado. O agronegócio tem um papel importantíssimo na economia brasileira, mas, ao mesmo tempo, essa produção pode transformar o Brasil em um deserto. Quando se fala de agricultura, é necessário encontrar uma saída que combine as demandas do agronegócio com a importância da nação, uma das maiores produtoras deagrobiodiversidade do mundo”, conclui.

castanha-do-pará

“Acredito que a campanha precisa andar para além das fronteiras do Brasil. É importante que tenha pelo menos um caráter latino-americano, posi vários dos ecossistemas que produzem a biodiversidade local são fronteiriços” destaca o antropólogo. Segundo ele, há enorme necessidade de integrar de maneira sistêmica os ambientes e as populações que vivem nessas regiões.

O problema da destruição da biodiversidade brasileira por conta da agricultura é apontada por Alex Atala como um objetivo: “Um sonho grande que ainda não sei se o ATÁ será capaz de alcançar é rever a legislação de produtos químicos usados na agricultura atualmente. E nós só podemos ganhar força se o projeto de lei entrar em pauta e for votado. Isso representa uma legitimação de toda essa luta”, finaliza.

Alimento é resistência e vida

“Nós compreendemos como cultura alimentar tudo que está em volta do alimento, principalmente a espiritualidade, os rituais sagrados, os processos de cura, a tecnologia social de manejo e o cultivo tradicional” diz Tainá Marajoara, representante da Rede Cultura Alimentar. “Somos uma cultura milenar em volta do alimento. É através dele que se conserva a nossa identidade, a nossa primeira língua e também a nossa resistência por existir”.

Tainá, que vive e analisa a realidade dessas comunidades, relata que muitas ações são feitas independentemente de políticas governamentais. “Há muito tempo os povos tradicionais se reúnem e fazem ações efetivas com conquistas alcançadas pelo reconhecimento da comida como cultura no Brasil”. Ela aponta também a necessidade do movimento estar próximo às condições específicas do país. “A cozinha brasileira não é só dos restaurantes. Os atores desse conhecimento de raiz estão espalhados em outros lugares, principalmente distantes dos centros urbanos”, completa.

Conquista para uma nação

Ela mencionou também que, entre as moções definidas durante a Conferência Nacional da Cultura, realizada em dezembro de 2013, a de número 94 propôs que a expressão “cultura alimentar” substitua o termo “gastronomia” nas políticas públicas do Ministério da Cultura. “Essa determinação solicitou o reconhecimento oficial da alimentação e a formação de um setor específico para essa área” destaca Marajoara.

Tainá Marajoara relatou que em 12 de março de 2014 foi aprovada a Portaria MinC nº 22, que integra a expressão “cultura alimentar” ao Programa Nacional de Apoio a Cultura (Pronac). Dessa forma, a área passa a integrar e receber todas as ações correlatas por meio do Ministério da Cultura. “A aprovação dessa portaria forma o Setorial de Cultura Alimentar e valida nossa luta de muitos anos em busca de garantir a sobrevivência dos povos tradicionais e a preservação do conhecimento ancestral do país”, finaliza.

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