Afrobetizar a educação no Brasil

Para a psicóloga Vanessa Andrade, as crianças brasileiras precisam aprender a valorizar a própria cultura

No morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, a psicóloga Vanessa Andrade ouvia com frequência: “Ai tia que cabelo feio” ou então “tia bruxa”. Essa era a reação dos pequenos quando ela passava pelas ruas com seu cabelo afro. Segundo Andrade, isso ocorria porque essas crianças estavam desacostumadas a enxergar a beleza presente no jeito negro de ser. “Isso me doía muito, mas ao mesmo tempo me convocava para uma missão maior de tentar mudar o pensamento dessas crianças”, conta a psicóloga e coordenadora do projeto Afrobetizar.

Quando se trata de identidade, as escolas brasileiras são monocromáticas nos livros e nas histórias. Nossa educação não possibilita que alunos negros encontrem seu caminho e conheçam o lado verdadeiro da vida e da cultura africana presente de forma intensa no Brasil. Com a finalidade de mostrar que outra pedagogia é possível, Andrade iniciou um trabalho intenso de transformação social no Cantagalo.

“O Afrobetizar surgiu da necessidade de trabalhar uma pedagogia diferente, que fizesse com que as crianças descobrissem o próprio corpo através de reconhecer a beleza de ser negro”, diz a psicóloga. Segundo ela, a ideia que coloca professores negros que cursaram ou estão na universidade, realizando projetos de sucesso na vida, tem como intuito trabalhar o protagonismo negro e inverter o processo histórico que sempre colocou o negro como ser inferior em relação ao branco.

Nosso corpo é nosso território

“Com o tempo tivemos a ideia de fazer ações contínuas com as crianças da comunidade”, conta Andrade, a qual ao lado de Gessica Justino e Aruanã Garcia, forma a equipe de professores que organizam oficinas semanais com as crianças em busca de descontruir preconceitos e fortalecer os saberes que não chegam aos pequenos por meio da escola convencional.

“Eu sempre acreditei que não adianta ficar no blábláblá, é preciso provocar a criança com as sensações e com corpo”, diz a psicóloga. Vanessa Andrade pontua que esse é um projeto que trabalha com corporeidade, mas não aquela que se esgota no movimento de dança ou de capoeira e sim a capacidade de ter consciência e acesso às possibilidades corporais. Isso ajuda essas crianças a assumir espaços nos quais tradicionalmente não estão inseridas.

Ensinar além dos livros

A Lei nº 10.639 de 2003 estabeleceu que a história e cultura afro-brasileira e indígena fossem inseridas na educação do país. Ainda assim, os livros que carregam a informação sobre outros personagens fundamentais para a história e a formação da identidade brasileira chegam a passos lentos nas escolas do Brasil. Para Andrade, existe um esforço para que essa lei seja respeitada, mas falta potencializar a descoberta de metodologias para aplicá-la.

“Não basta dizer para as crianças que é lindo ser negro. Contar quem foi Zumbi e Maria Carolina de Jesus. Essas crianças precisam viver uma experimentação positiva para que elas interiorizem esse sentimento de valorizar a própria cultura”, relata.  A psicóloga reconhece a importância de transformação presente na lei, porém, vê também a necessidade de trabalhos que afetem de verdade as crianças e jovens.

“A sensação que eu tenho com relação a essa lei é que há uma corrida para que ela seja aplicada através de livros, mas se não tiver um trabalho além do papel, não adianta”, diz Andrade. Para ela o “letramento corporal” que contemple o campo sensorial e entre no mundo de cada criança é fundamental.

Projeto no Museu de Favela

O projeto é realizado na sede administrativa do Museu de Favela – MUF. O local foi criado por moradores do Cantagalo e conta a história da origem da favela através de grafites nas paredes das casas das pessoas que vivem ali. No espaço cedido para o Afrobetizar, há cerca de 30 crianças que participam com frequência das atividades.

“O MUF é o primeiro museu a céu aberto criado em uma favela”, conta Andrade. Segundo ela, as pinturas foram feitas para proteger os moradores desse lugar que sofriam com a ameaça de serem retirados de suas casas. Localizado na zona sul do Rio de Janeiro, a ameaça da especulação imobiliária fez com que a população se unisse e utilizasse o museu estratégia  como estratégia de sobrevivência nessa região.  

Com o passar do tempo, o MUF tornou-se uma referência em grafite e passou a integrar um dos pontos turísticos da cidade maravilhosa. A iniciativa popular é reconhecida como o primeiro museu territorial e vivo sobre memórias e patrimônio cultural de uma favela no mundo.

As fotos da reportagem foram feiras pela equipe do Coletivo Baobá, projeto de comunicação que também trabalha em parceria com o Afrobetizar.

Vanessa Cancian para o Portal NAMU

Diversidade sim: diga não à intolerância religiosa

Comunidades de terreiro se mobilizam em todo o país em busca de combater o preconceito e a perseguição. Saiba mais sobre a luta pela preservação da cultura afro-brasileira

“A sua riqueza vem lá do passado, de lá do congado, eu tenho certeza”, a música do baiano Edil Pacheco, eternizada na voz de Clara Nunes celebra a riqueza cultura africana que foi construída no Brasil. Os cantos, os toques, a comida, danças e influências da negritude que pairam nessa terra guardam uma riqueza cultural imensurável. Historicamente, a construção da nossa identidade fez com que o Brasil se tornasse um país negro em cor, forma e conteúdo, mesmo que essa negritude tenha sido renegada ao longo dos anos, a resistência fez com que nos tornássemos o maior país negro fora do continente africano.

Roger Cipó/ Olhar de um cipó

Anos de escravidão, lutas por liberdade e ainda hoje a população negra sofre com o preconceito e a falta de respeito por suas tradições. Recentemente, o Terreiro Casa de Oxumarê, um dos mais antigos e tradicionais do Brasil, organizou uma mobilização nacional em busca de defender e clamar por respeito para com os cultos religiosos afro-brasileiros. A destruição de terreiros, ofensas, invasões e manifestação de ódio e intolerância mostram o retrocesso de parte da sociedade brasileira que teima em contestar a diversidade cultura de um país formado da intensa mistura de etnias.

“Começamos com essa mobilização, sobretudo após o surgimento do exército chamado Gladiadores do Altar, explica Akinyàlé Elias Pontes, coordenador da Rede Afro-brasileira Sociocultural do Estado de São Paulo e Gestor do Grupo de Trabalho de intolerância religiosa no Ministério da Justiça do DF. Segundo ele, adeptos da igreja Universal vêm atacando os centros de matrizes africanas com a justificativa de que são lugares onde se encontra o “demônio”. Casas de culto tanto de candomblé quanto da umbanda em todo o Brasil assinaram um manifesto que será encaminhado para a ONU como forma de campanha por mais respeito e igualdade.

A luta dos povos de terreiro é a mesma em todos os estados do Brasil. Em São Paulo foi criada a inciativa “As Águas de São Paulo”, com a finalidade de expandir a importância de denunciar atos de preconceito com os povos de matriz africana e promover a liberdade religiosa e preservação dessas tradições.  “Precisamos quebrar esses tabus colocados por outras religiões que, ao invés de somar desagrega e gera uma competição que não acrescenta em nada”, diz o Babalorisá Ofanire, Presidente de “As Águas de São Paulo”, um dos maiores movimentos brasileiros contra discriminação e intolerância religiosa.

A beleza negra escondida pela mídia

“Toda riqueza cultural das tradições afro-brasileiras não é mostrada porque não temos espaço na mídia para exibir o que os povos de terreiro têm de melhor”, pontua Pontes. O militante e iniciado no candomblé ressalta também o infeliz hábito dos meios de comunicação brasileiros de reproduzir imagens ruins que não condizem com o que de fato acontece dentro dos terreiros. Mais do que isso, nas poucas vezes em que o debate relacionado ao universo cultural afro-brasileiro chega à grande mídia, o que se vê são produções carregadas de estereótipos e o povo negro sendo alvo de piadas e desrespeito.

Roger Cipó/ Olhar de um Cipó
Roger Cipó/ Olhar de um Cipó

Por esse motivo, a luta das comunidades tradicionais e como de fato acontecem os rituais, a representação do sagrado e toda riqueza cultural fica escondida por uma sociedade ocidental de predominância cristã. “Somos uma cultura milenar viva e que resiste até os dias de hoje, oprimida e se escondendo daqueles que querem acabar com tudo isso”, lamenta Pontes.  

Conhecer para respeitar e vice-versa

O antropólogo Darcy Ribeiro afirma em sua obra O Povo Brasileiro que a população negra foi a força substancial da construção do Brasil. Segundo ele, a presença dos povos africanos fez quase tudo que aqui se fez e construiu o que hoje conhecemos como nosso país. Atitudes noticiadas recentemente mostram a falta de conhecimento da população sobre sua própria origem e, mais do que isso, o desrespeito por culturas diferentes. “Eu acredito que para a sociedade respeitar as diferenças é preciso dar a oportunidade de conhecer julgamentos. Ignorante é aquele que não se permite conhecer”, destaca Cerqueira.

“O que aconteceu essa semana foi um movimento histórico digno de ser noticiado pelos mais importantes canais de comunicação do Brasil. Pela primeira vez as comunidades de terreiros de todos os estados do país, se mobilizaram e denunciaram os ataques e abusos motivados pela intolerância religiosa, no Ministério Público. A falta de atenção da grande mídia para nossa causa demonstra o quão fundamentalista e preconceituosa é a nossa comunicação que enxerga os terreiros somente como exoterismo para previsões e matérias tendenciosas, mas nunca noticiam as importantes lutas que protagonizamos pela tão sonhada liberdade de culto e expressão da fé”, diz Roger Cipó, fotógrafo e candomblecista.

Roger Cipó -/Olhar de um Cipó

“Para mudar essa realidade, temos que combater a raiz da intolerância, que pra mim é o racismo. Historicamente a sociedade negou a cultura, religião e identidade do negro para negar a sua humanidade e justificar até mesmo a escravidão”, alerta Marina Duarte de Souza, jornalista e produtora cultural. Segundo ela, as religiões de matriz africana foram demonizadas pela sociedade cristã branca e patriarcal e até hoje as pessoas reproduzem esse discurso de macumba, feitiçaria, magia negra o que explicita ainda mais o racismo.

A jornalista se iniciou recentemente no candomblé e sente na pele as manifestações de preconceito quando as pessoas se deparam com seus trajes brancos. “Sinto que as vezes chega a ser uma fobia. Há pessoas que chegam com papos como “Jesus te ama menina” e respondo: “não foi ele que pregou o respeito ao próximo?”, completa. “Em longo prazo isso se combate com educação e informação, daí a importância de leis como a 10.639, do Estatuto da Igualdade Racial e do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana”, ressalta Souza.